Cartografia Negra
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Pelo direito a um legado na cidade

Recentemente, muito se tem discutido sobre monumentos em cidades e seus significados. A conversa, no entanto, não é simples: não se trata apenas de decidir qual estátua fica e qual é derrubada, ou quem é ou não homenageado. Trata-se de uma representação do pensamento social que se quer construir.

Recentemente, muito se tem discutido sobre monumentos em cidades e seus significados. A conversa, no entanto, não é simples: não se trata apenas de decidir qual estátua fica e qual é derrubada, ou quem é ou não homenageado. Trata-se de uma representação do pensamento social que se quer construir. Em São Paulo, assim como em muitas cidades, buscava-se criar uma noção eurocentrada da história, apagando figuras negras de suas narrativas. Os monumentos são uma materialização e documentação desse processo. Enquanto a elite conservadora construía esse imaginário, a partir dos meios de comunicação, da literatura, da legislação, de projetos de cidades e estátuas, baseado em um pensamento racista, os movimentos negros sempre se mobilizaram no sentido de criação de vida e resistência.

No último século, na cidade de São Paulo, temos monumentos que são marcantes no entendimento dessa discussão: alguns deles são “Monumento à Mãe Preta”, “Marco Sincrético da Cultura Afro-brasileira” (conhecido como “Emblema de São Paulo”) e “Joaquim Pinto de Oliveira”.

O “Monumento à Mãe Preta”, localizado ao lado da Igreja do Rosário dos Homens Pretos, no Largo do Paissandú, no centro da cidade, foi inaugurado em 1955, no aniversário do IV centenário da cidade. A região é um reduto político e religioso da comunidade negra paulista. Desde o início do século XX, os movimentos negros já buscavam essa representação em forma de monumento: desenvolveram um projeto para colocá-lo no Rio de Janeiro, que gerou protestos de membros da elite branca brasileira. Mas, por conta do contexto político hegemônico, esse projeto foi barrado e o “Monumento à Mãe Preta” foi construído em São Paulo, em outro formato. Percebe-se nele uma mulher disforme, com o corpo grande e uma cabeça pequena. Foi produzido por Júlio Guerra, um artista branco, mesmo autor da estátua que homenageia Borba Gato, genocida, estuprador e escravagista, bandeirante paulista que viveu no século XVII, cuja obra tem 13 metros de altura, representando-no com medidas proporcionais. José Correia Leite, reconhecido pela sua brilhante atuação na imprensa negra na cidade, também criticou o resultado dessa homenagem à Mãe Preta, por conta da disformidade da escultura, no livro “E disse o velho militante José Correia Leite”, de 1992, de sua autoria e de Cuti, fundador da série Cadernos Negros, poeta, dramaturgo, ficcionista e ensaista paulista. Correia Leite afirma: “Eu até hoje sou contra aquilo. Se fosse uma branca, não permitiriam que um artista fizesse uma figura deformada como aquela. Por que não fizeram como um José Bonifácio que tem ali na Praça Ramos, o Anchieta, da Praça da Sé, todos os outros monumentos com traços bonitos? (…) Isso é ignorância da história…”.

Ama da Leite, por Gê Viana
Ama da Leite, por Gê Viana

Outro monumento de grande impacto acerca desta questão é o “Marco Sincrético da Cultura Afro Brasileira”, conhecido como “Emblema de São Paulo”, que está localizado na Praça da Sé e foi inaugurado em 1979. Obra de Rubem Valentim, escultor, jornalista, pintor e professor, nascido em 1922 em Salvador, na Bahia. Produziu diversas peças com elementos de culturas afro-brasileiras, pelas quais foi fortemente influenciado, como no caso da escultura em questão, que ele nomeou como “Marco Sincrético da Cultura Afro Brasileira”. Apesar disso, a obra ficou conhecida por outro nome. O próprio autor, um homem negro, não ficou tão conhecido como tantos artistas brancos são. Por mais que dentro do circuito das artes ele tenha sido reconhecido e continue sendo, no campo da educação ele não se tornou uma referência. Assim, percebe-se o apagamento em relação a ele e sua produção artística. Era um artista que buscava trazer à tona a grandiosidade dos povos em diáspora na formação do Brasil, demonstrando seu posicionamento político. Afirmou: “Meu pensamento sempre foi resultado de uma consciência da terra, de povo. Eu venho pregando há muitos anos contra o colonialismo cultural, contra a aceitação passiva, sem nenhuma análise crítica, das fórmulas que nos vêm do exterior – em revistas, bienais, etc.” (VALENTIM, Rubem. Rubem Valentim: artista da luz. São Paulo: Pinacoteca, 2001. p.30).

Arte de Gê Viana
Arte de Gê Viana

Já a obra “Joaquim Pinto de Oliveira”, localizada na Praça Clóvis Beviláqua entre a Praça da Sé e a Igreja do Carmo, foi inaugurada em 20 de novembro de 2020, Dia da Consciência Negra. Elaborada em conjunto pelo artista Lumumba Afroindígena e pela arquiteta Francine Moura, foi construída em um cenário político e social divergente das anteriores. Em 2020, foram colocadas em pauta discussões questionando o sentido histórico de homenagens a escravocratas e genocidas em esculturas por cidades ao redor do mundo. Sobre o monumento “Joaquim Pinto de Oliveira”, Rita Teles, que atuou como produtora executiva nessa homenagem, pontua em entrevista para o portal ArchDaily:

“A ideia principal desta empreitada é afastar, de uma vez por todas, a aura de invisibilidade que repousava sobre a história de Tebas. Um monumento que projeta, em grande escala, a contribuição negra para a cidade em que uma criança, ao passar no local, possa se sentir representada com aquela escultura que pode remeter a um super-herói ou, simplesmente, a um homem importante que existiu e lutou dignamente por sua afirmação e espaço”.

Joaquim Pinto de Oliveira, conhecido como Tebas, foi um homem negro que viveu entre os séculos XVIII e XIX. Nascido em Santos, veio para São Paulo e se destacou por conta de sua habilidade com construção de alvenaria (na capital, as construções na época eram majoritariamente de taipa de pilão). Trabalhou na fachada da Igreja do Carmo, da Catedral de São Paulo, e construiu o primeiro sistema de abastecimento público da cidade, o Chafariz da Misericórdia.

Arte de Gê Viana
Arte de Gê Viana

Apesar do grande esforço das elites brancas em manter sua hegemonia, as populações negras têm ocupado mais espaços formais na construção do imaginário paulista, como percebemos no caso dos monumentos citados acima. Ainda assim, existem muitos lugares que continuam operando de forma discriminatória e genocida, tanto em São Paulo quanto em esfera global. Assim como o projeto de apagamento é constante, a resistência, a criação de vida e a manutenção da história pelos povos negros também é. Seguimos.

Cartografia Negra – o coletivo realiza mensalmente, desde 2018, a Volta Negra, uma caminhada aberta na qual são compartilhados registros em mapas, fotos e documentos sobre as vivências da população negra nos séculos XVIII e XIX na região central da cidade de São Paulo. O trabalho é fruto de uma pesquisa que o grupo desenvolve há mais de três anos sobre essas narrativas e espaços, em busca de colaborar no processo de manutenção da memória negra na cidade, que vem sendo apagada historicamente. Durante a pandemia, o coletivo tem participado de conversas e atividades online.

Gê Viana – vive e trabalha em São Luís do Maranhão. A artista produz colagens decoloniais analógica e digital usa imagens de arquivo para transpor seus trabalhos, inspirada pelos acontecimentos da vida familiar e o seu cotidiano num confronto entre a cultura colonizadora hegemônica e seus sistemas de arte e comunicação. Viana também usa a fotografia em experimentos de Lambe-Lambe nas ruas e desenvolveu essa série de imagens especialmente para esse projeto. 

Cartografia Negra

O Cartografia Negra desde 2017 tem se dedicado a repensar e ressignificar territórios negros em São Paulo. Nossa missão é resgatar histórias e memórias desses espaços, que foram cenários de resistência, inovação e tecnologia de pessoas negras.

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